sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Bichos

Não. 
Não vou falar sobre animais de estimação, de zoológicos, de savanas, florestas, rios e mares.
Vou falar de bicho pessoa.
E de como percebi que eu – enquanto bicho também – me percebi num choque de gerações.

Há 15 anos atrás, eu, com recém completos 18 anos, recebia o título tão sonhado de bichete!
Fui aprovada no curso de graduação que tanto sonhava.
Fui para a faculdade, com uma alegria gigantesca, preparada para levar o trote, com a melhor boa esportiva do mundo.
As veteranas deram uma aula trote, depois pintaram o rosto e a roupa de todos os bichos.
A pintura era feita com guache e maquiagem.
A intenção era não causar prejuízos aos bichos e às bichetes.
Dali fomos pedir dinheiro nos semáforos.
A orientação era: "ninguém é obrigado a dar dinheiro. Peçam com educação."
Depois do meio dia, quem quis acompanhou os veteranos para tomarem alguma coisa nos bares, quem não quis foi para casa. Essa última opção, foi a minha.
Tudo tranquilo e sem estresses.
Ao longo dos 15 anos que se passaram, aconteceram muitas coisas.
Eu me formei.
Eu me casei.
Eu trabalhei.
Eu me especializei.
Eu me tornei mãe.
E essa última experiência transformou meu jeito de olhar para as coisas. 
Agora eu olho para as coisas da vida pesando consequências, avaliando a quantidade (in)disponível de dinheiro, de recursos, de apoio.
E nesta semana, curiosamente, eu revivi o trote.
Mas agora como adulta.
E descobri que os anos passaram de verdade, e me mudaram de verdade.

Eu estava no meu carro, dirigindo em direção a faculdade (a mesma que eu frequentei), quando fui parada por nada mais, nada menos, que bichos e bichetes.
Minha primeira reação foi dar um largo sorriso (eu guardo com carinho as lembranças, como falei antes).
E depois, tive meu carro bloqueado por uma quantidade considerável de bichos e bichetes, que afirmavam ora em tom de brincadeira, ora em tom de ameaça, que não sairiam da frente sem que eu contribuísse com alguma quantia em dinheiro.
Achei estranha a abordagem, mas continuei com o meu sorriso. Tinha um compromisso com hora marcada na faculdade, precisava sair dali rápido. Então, peguei algumas moedas e dei.
Alguns metros à frente, a mesma abordagem.
E eu – ainda com o sorriso – disse: já contribuí com o pessoal ali atrás.
A reação não foi das melhores.
Os bichos começaram a rodear o carro dizendo num tom de agressividade: “não foi para a gente”.
Mas me deixaram passar.
Quando olhei no retrovisor, percebi muitas camisetas, bermudas, calças e saias rasgadas.
E os bichos – que talvez tivessem um pouco mais de 17 anos – estavam, a grande maioria, com garrafas de pinga e cerveja nas mãos, tomando do gargalo.
Às 9 horas da manhã.
Já perto das 13:30, meu compromisso tinha acabado, e eu estava indo almoçar.
Fui abordada de novo.
Não tinha nem moeda.
Nem sorriso.
Agora, os bichos com roupas ainda mais rasgadas e claramente embriagados, paravam o trânsito completamente.
E para pedir dinheiro, batiam nos carros.
Bateram no meu.

Aí, minha senhorice se apossou de mim por completo.
Tive vontade de descer do carro, jogar as bebidas alcóolicas no chão, botar todo mundo sentadinho e faze-los comer arroz, feijão, uma proteína e salada. Tive vontade de pegar o dinheiro que recolhiam para o pedágio para indenizar os pais (judiação daquelas roupas novinhas, todas rasgadas, com tanta gente passando necessidade na rua). De falar para eles valorizarem o esforço das famílias para que eles estivessem ali. De falar para eles valorizarem e honrarem a oportunidade que conquistaram.
Mas não fiz nada disso.
Só fiquei pensando em como seria para mim como mãe, levar minha filha para o primeiro dia na universidade, depois de anos sonhando com o título de bichete. E receber minha filha com a roupa rasgada, embriagada desde às 9 horas da manhã, com novos amigos que entendem que comemorar essa conquista passa por essas ações.
Fiquei triste.
Pela primeira vez, o trote, os bichos, as bichetes, foram uma lembrança ruim para mim.
Contando os anos, até que esse dia chegue para a pequena, temos 11 anos pela frente.

Tomara que, ao longo dos próximos anos, a forma de virar bicho, seja mais humana.

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