Não.
Não vou falar sobre animais de
estimação, de zoológicos, de savanas, florestas, rios e mares.
Vou falar de bicho pessoa.
E de como percebi que eu – enquanto bicho
também – me percebi num choque de gerações.
Há 15 anos atrás, eu, com recém completos
18 anos, recebia o título tão sonhado de bichete!
Fui aprovada no curso de graduação que tanto
sonhava.
Fui para a faculdade, com uma alegria
gigantesca, preparada para levar o trote, com a melhor boa esportiva do mundo.
As veteranas deram uma aula trote, depois
pintaram o rosto e a roupa de todos os bichos.
A pintura era feita com guache e
maquiagem.
A intenção era não causar prejuízos aos bichos e às bichetes.
Dali fomos pedir dinheiro nos semáforos.
A orientação era: "ninguém é obrigado a dar dinheiro. Peçam com educação."
Depois do meio dia, quem quis acompanhou os veteranos para
tomarem alguma coisa nos bares, quem não quis foi para casa. Essa última opção,
foi a minha.
Tudo tranquilo e sem estresses.
Ao longo dos 15 anos que se passaram, aconteceram muitas coisas.
Eu me formei.
Eu me casei.
Eu trabalhei.
Eu me especializei.
Eu me tornei mãe.
E essa última experiência transformou meu
jeito de olhar para as coisas.
Agora eu olho para as coisas da vida pesando
consequências, avaliando a quantidade (in)disponível de dinheiro, de recursos,
de apoio.
E nesta semana, curiosamente, eu revivi o
trote.
Mas agora como adulta.
E descobri que os anos passaram de
verdade, e me mudaram de verdade.
Eu estava no meu carro, dirigindo em
direção a faculdade (a mesma que eu frequentei), quando fui parada por nada
mais, nada menos, que bichos e bichetes.
Minha primeira reação foi dar um largo
sorriso (eu guardo com carinho as lembranças, como falei antes).
E depois, tive meu carro bloqueado por uma
quantidade considerável de bichos e bichetes, que afirmavam ora em tom de
brincadeira, ora em tom de ameaça, que não sairiam da frente sem que eu contribuísse
com alguma quantia em dinheiro.
Achei estranha a abordagem, mas continuei
com o meu sorriso. Tinha um compromisso com hora marcada na faculdade, precisava
sair dali rápido. Então, peguei algumas moedas e dei.
Alguns metros à frente, a mesma abordagem.
E eu – ainda com o sorriso – disse: já contribuí
com o pessoal ali atrás.
A reação não foi das melhores.
Os bichos começaram a rodear o carro
dizendo num tom de agressividade: “não foi para a gente”.
Mas me deixaram passar.
Quando olhei no retrovisor, percebi muitas
camisetas, bermudas, calças e saias rasgadas.
E os bichos – que talvez tivessem um pouco
mais de 17 anos – estavam, a grande maioria, com garrafas de pinga e cerveja
nas mãos, tomando do gargalo.
Às 9 horas da manhã.
Já perto das 13:30, meu compromisso tinha
acabado, e eu estava indo almoçar.
Fui abordada de novo.
Não tinha nem moeda.
Nem sorriso.
Agora, os bichos com roupas ainda mais
rasgadas e claramente embriagados, paravam o trânsito completamente.
E para pedir dinheiro, batiam nos carros.
Bateram no meu.
Aí, minha senhorice se apossou de mim por
completo.
Tive vontade de descer do carro, jogar as
bebidas alcóolicas no chão, botar todo mundo sentadinho e faze-los comer arroz,
feijão, uma proteína e salada. Tive vontade de pegar o dinheiro que recolhiam
para o pedágio para indenizar os pais (judiação daquelas roupas novinhas, todas
rasgadas, com tanta gente passando necessidade na rua). De falar para eles valorizarem o esforço das famílias para que eles estivessem ali. De falar para eles valorizarem e honrarem a oportunidade que conquistaram.
Mas não fiz nada disso.
Só fiquei pensando em como seria para mim
como mãe, levar minha filha para o primeiro dia na universidade, depois de anos
sonhando com o título de bichete. E receber minha filha com a roupa rasgada, embriagada desde às 9 horas da manhã, com novos amigos que entendem que comemorar essa conquista
passa por essas ações.
Fiquei triste.
Pela primeira vez, o trote, os bichos, as
bichetes, foram uma lembrança ruim para mim.
Contando os anos, até que esse dia chegue
para a pequena, temos 11 anos pela frente.
Tomara que, ao longo dos próximos anos, a forma de virar bicho, seja
mais humana.