Durante esse tempo que estive longe (fiquei o mês de Março em silêncio) muita coisa aconteceu em casa, mas três coisas mexeram muito comigo. E demorei, ou ainda, estou demorando, em organizar as ideias. Vou tentar compartilhar, e com o perdão ao plágio descarado ao Dr Seuss quero apresentar as minhas: Coisa 1, Coisa 2 e Coisa 3.
Coisa 1: Li em um jornal uma reflexão sobre como tem sido comum as pessoas dizerem que "odeiam crianças" e em uma pesquisa bem rapidinha no Google, encontrei muitos (mas muitos, mesmo!) textos afirmando esse sentimento tão intenso dirigido às crianças.
Coisa 2: A professora da pequena me chamou para conversar, o motivo é que a pequena não é rápida o bastante para o 2º ano. Ela deveria copiar coisas das lousa em pouquíssimos minutos, ela deveria contar objetos muito rapidamente. Ela as vezes leva um tempo muito longo (20 a 30 minutos) para escrever 5 parágrafos a mão.
Coisa 3: O responsável pelo condomínio onde eu moro decidiu que a rua não deve ser um espaço de brincadeira para as crianças, a justificativa é as pessoas não são obrigadas a gostar de compartilhar os espaços com elas.
Pode ser que olhando as coisas separadamente a gente ache que uma Coisa é uma Coisa, e outra Coisa é outra Coisa. Mas para mim, Coisa 1, Coisa 2 e Coisa 3 fazem parte de uma Coisa só. É uma Coisa bem grande, mas ainda sim é uma só: a desvalorização do ser humano.
Nossa, Karina... Que absurdo!
Juro que não...
Quem diz que odeia criança, diz baseando-se no fato de que elas são inconsequentes, barulhentas, egoístas, e que dão muito trabalho. Que a vida com elas produz mais limitações e responsabilidades do que ganhos. As escolas, mesmo as que têm uma metodologia bacana, querem alunos produtivos, prontos, com habilidades de pessoas adultas já desenvolvidas. Os espaços de convívio têm sido categóricos, hoje em dia existem restaurantes, hotéis e condomínios que têm sido explícitos ao dizerem que não recebem crianças. As justificativas são as mesmas quem diz que as odeia.
Mas a pergunta que eu te faço é: os adultos também não são inconsequentes? Barulhentos? Egoístas? E dão muito trabalho? A vida de um adulto também não é limitada? E em nossa vida adulta não lidamos muito mais com responsabilidades do que ganhos?
Se nós pensarmos no cuidado (ou falta de cuidado) com o meio ambiente, os adultos têm sido bastante inconsequentes com o tema. A inconsequência também é vista no trânsito (espaço cuja responsabilidade é do adulto), nos hospitais (espaço comandado por adultos), na política (espaço gerido por adultos). Nós adultos, nas nossas relações, também não sabemos ser altruístas, calmos, otimistas e com equilíbrio.
As pessoas têm se esquecido que criança não é um ser separado da humanidade.
Uma criança É um ser humano, que faz barulho (como os adultos, são barulhos diferentes, mas ambos podem incomodar), que diz o que pensa (como o adulto faz, e as vezes é melhor e mais coerente conversar com uma criança do que com um adulto teimoso), que as vezes é egoísta (e quem não é?), que dá trabalho (e o adulto não dá? Fale-me mais sobre como é cuidar de um amigo bêbado na balada? E como é fazer trabalho na faculdade com quem só quer que coloque o nome? E trabalhar na equipe com um funcionário que não quer fazer a sua função, é o sonho de todos nós, não é mesmo?).
A criança é um ser humano que está adquirindo habilidades e desenvolvendo competências, justamente para virar um adulto chato, como eu e você. E a palavra chave é "aprendendo". O problema de aprender algo novo, é que uma vez que a gente aprende, a gente esquece como era quando a gente não sabia, e numa dessas a gente acha que é ignorante quem ainda está aprendendo.
E num mundo de pessoas que se esqueceram de como era quando estavam aprendendo, não são desenvolvidas as capacidades de aprender, e não há espaço para errar, para tentar de novo, para viver o processo.
Você só tem uma chance.
E com uma chance só não dá para ser criança.
Com apenas uma chance, não se tem: nem tempo, nem espaço para aprender a ser humano.
Isto, por sua vez, gera pessoas não humanas, não que elas virem robôs, deixem de ser de carne e osso, não é isso. Mas como as crianças não tiveram tempo e espaço para descobrirem competências e valores, elas não oferecerão isso a ninguém.
E assim, vive-se esse ciclo que estamos vivendo hoje com a Coisa 1, Coisa 2 e Coisa 3.
Quem odeia a criança, odeia a si mesmo.
A escola que deseja a criança pronta, advoga contra ela mesma, pois o seu papel é preparar e ensinar.
O espaço que proíbe a entrada da criança, limita a si mesmo.
E assim, vamos ficando sem opções para nos desenvolvermos como seres humanos.
Sem a chance de adquirirmos habilidades e competências para vivermos em sociedade.
Sem a chance de aprimorarmos os nossos seres.
Eu vou lutar contra isso, mas eu não acho que a reposta seja odiar de volta, proibir igual, e aceitar a exigência da falta de prontidão.
Eu vou tentar lutar contra isso, dando a minha filha competências, estimulando nela capacidades para estar nos lugares e respeitar o próximo, mostrando a ela que a gente sempre pode aprender e treinar novas habilidades como fazer mais rápido, ou caprichar mais, ou prestar mais atenção, e que isso não tem a ver com a cobrança de alguém, mas com a nossa vontade de ser melhor todos os dias.
E não vou fazer isso apenas na infância, mas sempre.
Eu faço isso comigo todos os dias.
Eu não quero emburrecer, odiar a mim mesmo, esquecer de como já fui ignorante, e de como ainda sou para tantas coisas que preciso aprender.
Eu não quero perder o desejo de ser hoje alguém melhor do que fui ontem.
Eu não quero - por fim - deixar de ser um ser humano, e portanto, não quero que a pequena seja privada de ser.
Eu não sei onde você se encaixa nessa história toda, se você é quem está fazendo a Coisa 1, a Coisa 2, ou a Coisa 3. Ou se você está como eu, questionando e buscando uma alternativa a essas coisas.
Mas que independente de onde a gente esteja, que a gente seja capaz de lembrar que o MMC entre nós é que somos todos pessoas, ainda que sejamos crianças, adolescentes, adultos, idosos, brancos, negros, orientais, indígenas, cristãos, católicos, budistas, muçulmanos, umbandistas e tantos outros rótulos que a gente usa para esquecer que somos essencialmente e simplesmente pessoas.